sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

a gente tenta enganar a tristeza

a gente arruma o teto da cozinha
e muda o quadro de energia de lugar
a gente pega a senha do banco
a gente limpa a garagem
a gente não para de jogar lixo no lixo do fim da rua
a gente liga o seu carro que não liga
a gente aluga os quartos
e a gente aluga a garagem
a gente mantém sua poltrona disponível
a gente ouve as músicas que você gostava
a gente chora pensando nas festas que não teremos
a gente fala que você gostaria de ter visto isso ou aquilo
a gente te xinga
e reclama por não ter esperado mais tempo
a gente conta das suas confusões
a gente ri de você
mas o que a gente queria mesmo, de verdade
seria rir com você

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

não lembro de esquecer


A tinta que escapa do saco de lixo e cai na calçada lembra.
A poltrona vazia lembra
O vídeo lembra.
O samba lembra.
O bolinho de couve-flor lembra.
A caixa dos remédios lembra.
A roupa de cama que ficou sem par lembra.
Os chapéus lembram.
Os livros encadernados elegantemente com capa dura preta lembram.
O carro parado lembra que andou.
O silêncio lembra que você cantou.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

vocês não existe mais


Há pouco tempo, pouco mesmo, vi vocês dois entrando no sacolão.
Quando vi o carro, quase desviei, temendo a cobrança do tempo que neguei a vocês
Mas segui.
Vi que os dois desceram do carro, rindo.
Uma conversa animada embalava a vida.
Ontem, a presença do casal grisalho me ofendeu no mesmo estacionamento.
Era justo que fossem vocês, mas "vocês" não existe mais.
Senti, mais uma vez, que tenho menos que os outros.
Agora, também, menos pai
Me senti ofendida pela vida do casal de passos inseguros que dividiam a pouca força pelas sacolas.
Imaginei a sopa que tomariam no fim da quinta solitária.
E que talvez os filhos, já distantes, ligassem com alguma desculpa para não estar lá.
Ou que talvez nem ligassem e o prato a mais da sopa esperançosa sobrasse no fundo da panela.


quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Tenho pensado na morte


Tenho pensado na morte
Na morte que não aceita réplica
Na morte covarde e ditadora
Na morte que invade no início da madrugada
Na morte que não permite futuro
Na morte que deixa um infinito de passados
Tenho pensado na morte
Na morte que deixou sua poltrona vazia
Na morte que deixou sua digital no vidro do carro
Na morte que deixou a tomografia lacrada
Na morte que deixou irônicos remédios sem sucesso
Na morte que deixou seu whatsaap sem acesso
Que deixou, como sempre deixa, um pouco de culpa
Na morte que não responde perguntas
Na morte silenciosa
Na morte que grita silêncios
Tenho dormido e acordado mortes
Ressignificado mortes
Tenho pensado em sua morte
Mas tenho pensado também em sua vida



quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Que bom que deu tempo



Meu avô nunca desenhou comigo, mas que bom que eles tiveram tempo de saber que tipo de pessoa um avô poderia ser. Que tipo de pessoa o melhor avô poderia ser. Que tipo de avô a melhor pessoa poderia ser.
Que bom que deu tempo da Isa ficar perto de você, mais perto que todos os outros, é o que mostra agora.
Que bom que deu tempo do Tutu debruçar sobre o desenho, querendo ficar em destaque, como sempre quis.
Que bom que deu tempo da Cecê fazer postura de irmã mais velha e mostrar que, sim, sabe mais que todo mundo.
Que bom que deu tempo.
Deu tempo de você ser o avô que sempre sonhou ser. Melhor ainda que o pai que já era o melhor do mundo. Que bom que deu tempo de ser. Que bom que deu tempo de te ver nesse papel tão lindo.
Sua paciência infinita fica mais evidente agora. Cada papel riscado. Cada casinha da Branca de Neve. Cada cavalo.

A única coisa que te irritava era a correria. Brigava. Pai de meninas.






segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Dia do Poeta




“Seu pai descansou”
“Seu pai partiu”
“Ele não resistiu”
“Foi melhor assim”
Não tive o direito a nenhum desses eufemismos. A morte, irônica e implacável, se revelou sem nenhum cuidado para mim da fresta da janela do quarto, que um dia já abrigou a morte da avó. Triste janela.
Alguém, sobre o meu pai, fazia a tal massagem cardíaca que a gente só vê nos filmes. Uma vizinha de outra vida, uma respiração boca a boca.
Dizem que eu surtei e que fiz birra. O galo na testa hoje confirma essa hipótese improvável.
Eu gritei para chamá-lo. Gritei muito e muito alto. Como uma criança que sente dor ou é largada sozinha no escuro. Gritei de dar dor na garganta.
Ele me ignorou e partiu.
Um corpo vazio fingia dormir na cama. Na mesma posição em que ele dormia, a mesma expressão. Mas os braços relaxados ao lado do tal corpo, denunciavam, ele não estava mais ali. Resolveu deixar aquele corpo meio estragado que já não servia mais - já não andava nem tocava timba - e partiu.
Deitei ao lado do tal corpo esperando dele uma porta, uma passagem. Não se abriu. Foi ficando frio, o clima e o corpo, as orelhas arroxeavam, a morte tomava conta de tudo.
Muita gente andava pela casa. Pouco havia o que ser feito. As pessoas faziam café, preces, comentários inúteis e barulho. Minha mãe não chorava, só tremia com o olhar meio perdido no futuro (ou no passado?).
Gosto de registrar as emoções quando elas acontecem, mas sei que, neste caso, será difícil registrar todas que invadiram aquele longo corredor na noite do dia 19 para o dia 20 de outubro de 2019. A gente nunca esquece essas datas. Dia 20 era dia do poeta, dia do nascimento de Vinícius de Moraes, e eu tantas vezes comparei meu pai a ele....irônicos calendários.
“Se todos fossem iguais a você....”
Uma pasta verde - idêntica a que nos acompanhou nos últimos meses com exames e pedidos médicos - chegou nas mãos da tia. Ela guardava os “papéis do cemitério”. Eu liguei. Eu falei. Nem chorei. Informações práticas diziam que o custo seria alto e que o avô seria exumado. Decidi. Manda bala e segue o jogo.
No IML, tornei a morte uma oficial realidade. Reclamei o corpo que nem parecia ser seu. Vi a cicatriz costurada carinhosamente na parte de traz da sua cabeça. Na frente, na testa intacta e branca, podia se sentir o crânio sob a pele cortado, uma tampa.
Um milhão de pessoas foram vê-lo, elogiá-lo, falar da alegria, da delícia que era viver ao seu lado. Foi lindo. Teve reza e aplauso, do Ferreirinha e do Izonéu (me dou conta que nunca soube escrever esse nome, tantas vezes citado por ele). Foi lindo. Eu sorri mais do que chorei. Mas esperei que ele se metesse na conversa, como tanta vez se metia (e eu odiava). Ele permaneceu quieto. Parecia estar tirando sarro da nossa cara.
Hoje, um dia depois, estou feliz. Uma felicidade quase culpada. Isso, para mim, só pode significar que você também esteja. Cantando e sorrindo, como gosto de lembrar de você.
Este texto te deixaria muito orgulhoso, pai. Leia e guarde com o amor da “filha mais velha preferida”!





terça-feira, 8 de outubro de 2019

Meu pai teve um AVC




O sonho frustrado. O braço parado. O futuro questionado. O carro enguiçado.
Meu pai teve um AVC.
A frase fica voando em uma nuvem em um fluxo confuso de consciência não literária, mas fantástica. Não parece que essa vida seja minha. Sonho? Papel trocado?
O dito não encontra lugar na nuvem nem na vida. Fora de contexto.
Meu pai teve um AVC.
Já me imagino mudando o discurso do meu histórico familiar na minha consulta médica. Um sim invadindo uma coluna de habituais nãos. O passado mudando o futuro. Encruzilhada de vida.
Ele teve um AVC. Agora sonha ir para Portugal.
Nunca sonhou antes? Ou o AVC liberou o sonho esquecido?
Agora, sonha, com cadeira de rodas e tudo mais. Cadeira de rodas e ladeiras de Lisboa?
Cadeira de rodas e ladeiras de Lisboa. A melhor metáfora para minha realidade atual.
Desgovernada, com pouca habilidade, em uma cadeira de rodas solta na íngreme realidade que a vida impõe. Implacável.
Na descida desgovernada, meio sem saber em que muro vou parar, me divirto, rio.
Não é de mim. Mas talvez seja para mim.
Passo as noite de chinelo, esperando o chamado confuso dele.
Ele faz perguntas. Mistura passado, com presente com delírios de todos os tempos e dimensões.
Comemoramos pequenas conquistas. Unidos.
Sabe quem sou. Sabe quem somos. E sabe o que é o amor. Sempre soube.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

estamos sozinhos

uma das sensações mais assustadoras da maturidade é descobrir-se só. só e só. simples assim.
se a chefe é desumana, não há a quem recorrer.
se a filha é egoísta, a culpa, no fim, é sua mesmo.
se o vizinho faz barulho, o síndico é amigo.
se a rua tem buraco, sempre foi assim.
se a ressonância vai demorar 2 anos, o brasil tem gente demais.
se a fila do ps anda lenta. o brasil tem médico de menos.
se o pai caiu...a mãe também cai.
a quem envio o socorro?
cansa.
viver cansa.
compro goiaba e pão integral para animar, mas não anima.
o olhar é triste. eu quero arrancar deles essa tristeza, como tantas vezes quiserem arrancar a minha.



segunda-feira, 26 de agosto de 2019

a queda

ele caiu. ela ligou porque ele tinha caído.
o carro do resgate ofendia em frente ao portão.
minhas pernas curtas conquistaram os degraus, de dois em dois degraus.
cheguei ofegante e apavorada.
ela tremia. ele deitado, nu.
nu de papéis.
nu da autoridade.
nu da arrogância.
nu de lucidez. sorria.
fazia piadas fora de hora.
ela chorava prevendo o futuro.
não o que ela previa, mas o que a vida reservou.
nos reservou.

ele caiu.
o pai caiu.
agora, vira filho.

quarta-feira, 30 de maio de 2018

nãos

a vida é cheia de não
não corre
não vai embora
não
não exagera
não modera
não
não se esconda
não se mostre
não pinte a boca
não fale alto
não cale
não

tempos de nãos
mas tempos de sins

segunda-feira, 12 de março de 2018

a vida é tão clichê


marília, eu não te conheci. talvez de vista, comendo um enroladinho de queijo e presunto na padaria. certamente admirei seus cachos românticos - e, ironia, hoje sei que você não era nada romântica.

seria o tipo de pessoa que nunca chamaria minha atenção de forma positiva. faz parte de um grupo que faço questão de blocar como 'antipático'. as tais professorinhas....

mas a morte te pôs no palco. na corda. na luz. a morte te levou como leva a tantos. prematuramente? injustamente? sem dar satisfação.

adeus, marília.

terça-feira, 6 de março de 2018

quando descobri que não era a melhor

quando eu tinha uns 11 anos, em um jogo de handball, descobri que não era a melhor do mundo. até aquele dia, tinha sido.

minha família morava na melhora casa. meu pai desenhava jesus cristo. minha mãe tinha um carro de quatro portas azul turquesa. eu era a melhor aluna da escola. todos e todas queriam ser meus melhores amigos.

naquele maldito jogo, a implacável professora acabou com a minha invencibilidade perante a vida.

'- eu vou ser a atacante.'
'não. não vai.'
'não? por quê'
'porque a rita é a melhor.'

emudeci. recalculei a rota da vida....e segui.

saudade da Monga

devia ser década de 80 e eu devia ter 8 anos. eram férias e estávamos na casa da Penha. a cada tinha uma bancada de pastilhas amarelas na cozinha. a casa ficou jovem para sempre. Penha tem Alzheimer, não lembra de nós nem da casa ou das pastilhas.

passeio de pobre, férias na casa da Penha e passeio noturno à feirinha, lá fomos nós. eu era a mais velha, naturalmente mais corajosa, de todos os primos. a Monga era uma gorila assustadora que surgia dentro de uma jaula. diziam - nunca vi (deus me livre) - que era um truque de espelhos que fazia uma mulher transformar-se numa gorila. nunca entendi como acontecia aquilo nem o que era show de mágica. mas tudo bem, há coisas bem mais importantes que eu também nunca entendi.

tive medo. não entrei. disfarcei. desviei. (fiz isso outras vezes também ao longo da vida). à noite, quando o silêncio torna as verdades mais evidentes, tive enjoo. na infância, medo chamava enjoo. continuou chamando depois. no meio da madrugada, cutuquei a mãe. mãe de três, nem se assustou, sempre tinha alguém cutucando. 'tô com enjoo' - 'deita de bruço que passa' - acatei. deitei. não passou.

outra vezes na vida. bem depois dos 8. tive enjoo. deitei de bruços e não passou. mãe continua dizendo que vai passar. continua não passando. deito de bruços. deito de costas. olho do lado e a Monga continua lá. não passou. não passa.

saudade da Monga.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

assistindo a algumas pessoas assistirem a um show?


como muitos da minha geração, ouvi Phill Collins a vida toda. sempre achei que ele tinha cara de gente boa. de um cidadão comum que poderia, facilmente, morar no meu condomínio.
não acompanho de perto agendas de shows, mas não lembro de ele ter vindo antes fazer show em São Paulo. quando soube deste, manifestei vontade de ir. meio que só para marcar no check-list de coisas para fazer antes de morrer.

cheguei. sentei. um palco distante. um show de entrada. várias moças da minha idade (que sempre acho que mais velha) felizes, dançantes, loiras e tirando selfies. ando intolerante. muito intolerante.
o valor dos dois ingressos se aproxima do custo de um salário mínimo. vocês, aqui, sabem que minha vida não é fácil e que fortes vendavais aterrorizam no horizonte.

o que eu estava fazendo ali?

muitos efeitos especiais (talvez um pouco demais). ele cantou (ok!). músicos tocaram (!). a platéia cantou, dançou e, sobretudo, tirou muitas selfies para postar no facebook.

eu chorei, mas não sei se foi de emoção.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

um dia ela nasce, no outro, ela vai embora


nunca fui modelo de apego de mãe. quem me conhece sabe disso.
não sabia bem o que fazer com você (nem comigo) quando você nasceu. não sabia ser mãe, ninguém me ensinou. não estava preparada para crescer e assumir um papel tão importante. antes já haviam me dito que eu fugia de grandes responsabilidades. este fato só colaborou para provar isso.

você foi crescendo, apesar de pouco, cresceu. eu vivendo, trabalhando, sem ter muito tempo para prestar atenção nas suas birras e independências. hoje, você me surpreende. é mulher forte. 1,50 cheio de opiniões e ideias. realista. surpreendente e linda!

em uma foto bem sem graça, você está meio desenchavida de uniforme escolar indo para seu primeiro dia de aula em uma grande escola (média talvez). a maria chiquinha meio torta de mãe que não tem tempo. all star vermelho que depois seria sua paixão para sempre. uma parede branca atrás. parede brande de uma casa que ficou para trás, fechada e cheia de tristes histórias. você, de saia azul marinho protocolar, em frente da parede branca.

milênios se passaram depois desta foto, depois desta parede.
nesta semana, você caminhou sozinha para a maturidade. psicologia por escolha própria. a minha seria arquitetura, mas você teimou que não enfrentaria a bendita matemática. resignada, aceitei.

aí está você entrando. um portão grande e você pequena. não veja sua mão, mas veja sua cabeça erguida. não pior que ninguém. menos medo que eu (certamente). passos cuidadosos (sempre foram os seus). firme.

você talvez nunca saberá o orgulho que tenho de você. ou sabe e eu que não sei?

te amo. vou ficar aqui te olhando entrar pelo portão...sempre!


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Cecília Cacilda

Cecília, que nasceu Cacilda.
Ela não desejou nada. O destino a jogou para o lado de cá. Ela veio. Ficou.
Nunca se rendeu à língua.
As roupas são velhas.
As rugas sempre estiveram aí.

Ela sobreviveu.

O amante de Lady Chatterley 0 de D. H. Lawrence

"Foi uma noite de paixão sensual, em que ela ficou um pouco surpresa, e quase forçada: ainda assim trespassada mais uma vez por sensações profundas de sensualidade, diferentes, mais vivas, mais terríveis que as emoções de ternura, porém, naquele momento, ainda mais desejáveis. Embora um pouco assustada, deixou que ele fizesse o que queria, e aquela sensualidade ousada e sem pudores abalou-a profundamente, deixou-a nua até o cerne a a transformou em uma outra mulher. Não era exatamente amor. Não era voluptuosidade. Era uma sensualidade penetrante e ardente como o fogo, transformando toda a alma em combustível.
E consumindo totalmente seus pudores, seus pudores mais profundos e antigos, presentes nos lugares mais recônditos. Custou-lhe muito esforço deixar que ele fizesse o que queria, impondo-lhe sua vontade. Ela precisou reduzir-se a um estado de total passividade e complacência, como uma escrava fisicamente subjugada. Ainda assim a paixão ardida em torno dela, voraz, e quando a chama sensual lambeu suas entranhas e seus seios, ela realmente teve a impressão de que morria: mas uma morte magnífica e pungente."

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

as próximas páginas depois do meio da brochura

Em dezembro de 2011, às portas dos quarenta, eu escrevi este texto:

http://cochichodemaria.blogspot.com.br/2011/12/o-meio-da-brochura.html


Tenho uma expectativa (otimista) de viver até os 80. Estou, portanto, chegando ao meio da brochura. Não sei se relacionado a esta constatação ou não, mas fato, tenho tido dias de tênue depressão (ela me cercando e eu dormindo para escapar dela).
Folheando as que seriam então as 40 primeiras páginas não consido encontrar muitas que mereçam um post-it de marcação. Tive poucos momentos dignos de um post. E isso fica mais do que óbvio pela regularidade de postagens neste meu tão abandonado blog. A vida "das pessoas" sempre me parece tão mais interessante que a minha...
Levando em consideração o fato de que, as folhas entre os 20 e os 30 deveriam ter sido as mais agitadas, entro em pânico. Pois, a tendência é que as próximas sejam ainda mais irrelevantes.


e agora, cinco anos depois, como foram as próximas páginas?

perdi 30 quilos. certamente as certezas que abandonei ao longo dos últimos anos pesavam. passei de loira à ruiva, opção menos óbvia e mais excêntrica (uma liberdade). abandonei certezas, adotei dúvidas como parte construtiva (e divertida!) da vida...abri novas portas, descobri novas estradas.

minha biblioteca se multiplicou...mais e melhores...pesam nas prateleiras e nas minhas decisões. ainda luto por descobrir Pessoa. Mia virou uma amor eterno. Florbela, Clarice, Jane Austen....hoje, sou um pouco todas elas....

me descobri liberta...abandonei os grilhões. descobri que a Hebe é legal e será eterna. entendi que não preciso herdar os ódios maternos. criei meu próprio gostar. abracei a irmã incompreendida e hoje a rebelde sou eu.

abandonei os antigos ternos pretos que me faziam invisível. ganhei óculos vermelhos que me destacam. hoje vivo meus dias caçando erros, imperfeições...aprendi com isso a lidar de forma mais leve com os meus próprios. vejo meus defeitos como pontos vermelhos no meu ser antes tão sem cor. sei que sou um ser em construção e planejo cada tijolo

me rendi aos bojos avantajados dos sutiens ousados...e belos...às calcinhas fio dental...sou mais sexy hoje. alguém percebeu isso?

 descobri que andar nas calçadas espiando o interior dos quintais pode ser divertido. ler nos meus trajetos. observar as pessoas do metrô. descobri que gosto de gente.

Jeneci é uma conquista recente. Menage a trois também. sim, transei com uma mulher...e foi bom.


terça-feira, 4 de outubro de 2016

sem que nem porquê

há alguns dias morreu um ator global. quando morreu, era protagonista da novela das 9h, o que equivale no Brasil, a ser praticamente da família real. a novela era gravada na regiao do Rio São Francisco. quase no fim da novela, galã nadava no rio com a mocinha e o rio o engoliu. assim. sem que nem porquê.

há alguns dias, também, Andréa morreu. tudo deveria ter dado certo na vida dela. era linda, estudada e loira. casou, mas o marido cansou. ela ficou sozinha. na quinta-feira, no trabalho, coração falhou e ela morreu. assim. sem que nem porquê.

eu, em tempos de planos a longo prazo ameaçados, fiquei pensativa. o longo prazo é só a soma de dias e dias e mais dias. só isso. nada mais. no meio do longo prazo pode sempre aparecer um rio ou um coração. sem que nem porquê.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

eles comemorando a vida



de quando em quando, penso no blog abandonado, porém, jamais esquecido. são tantas as coisas que acontecem, mas nada de espetacular que mereça holofotes de celebridade, será?
a vida acontece em cores. aos domingos. na fresta de sol. nos sorrisos impagáveis deles. nas comemorações sem motivo. no quebra-cabeças.
a vida também envelhece. vai ficando quieta, rabugenta, solitária e cada vez mais preguiçosa...
de um lado ela pulsa, do outro, ela esmaece...vai perdendo a cor, desbota.

o amor continua amor. cada vez mais amor. cada vez maior e mais tranquilo. acomodado, paciente, tolerante e lindo. o amor eterno pintado em cores de eternidade.

eles crescem. os três, juntos. ontem, um deles comemorava na varanda - nem me lembro exatamente o que - e os outros dois ouviram. de repente, a correria e a tripla comemoração. do quê? mas o que isso importa? eram os três, de braços para o alto, comemorando!!!! e nós, em volta, nos emocionando.

eles ensinam o tempo todo. temos mesmo que esperar motivos para comemoração?

terça-feira, 22 de março de 2016

mais que eu

você já se sentiu como se a vida não coubesse na sua vida?
já desconfiou que houvesse mais da vida escondida em algum armário secreto?
você já quis olhar a vida do alto de um balão, sem destino e devagar?
já quis redesenhar o passado?
já quis não planejar o futuro?
você já quis trocar de roupa no meio do dia?
já quis tirar a roupa e desfilar nu de verdades?
você já quis mais do que você?
já desejou mais do que eu?
você já quis fugir?
já quis não ir?
você já se procurou em outra história?
desejou olhar por outra janela?
escrever outro livro?
ser outro personagem?

eu já!

terça-feira, 8 de março de 2016

dia da mulher?

as flores são fotografias com filtro
as flores não cheiram mais
as homenagens virtuais são fartas, mas falhas

falta

falta sua

no meio do dia, cresce a falta
a falta de quem falta
só a falta existe
só a falta é presente hoje

quanto falta algo em alguém
você faz falta

falta dos nós
dos nós de nós

falta o tudo
falta o não falar nada e falar tudo
falta o ponto final ... 

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Relatos de felicidade



ela é uma
eles, três
ela chega e nem as rugas e a cara nem sempre simpática os assusta
ela chama, eles vêm
vêm e sentam
sentam e contemplam
no sotaque arrastado, ela ainda conta histórias que lembra da distante infância
eles assistem
assistem quietos
curiosos e quietos
carinhosos

na porta da casa da mãe, aos domingos, sempre tem uma fresta de sol vespertino e reconfortante.
a gente almoça, come bolo preto e branco...toma café na xicrinha de ágata
aí a gente senta no degrau
num momento desses, de fresta e de degrau, eu vi a cena
a tecnologia - muitas vezes injustiçada - permitiu-me o registro
registro de emoção

em breve, ela vai embora
eles ficarão
a cena, para sempre

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

E agora, Benedito?

O personagem errou o texto.
O cenário desbotou.
A música entrou na hora errada.
E agora, José?

Meu roteiro era perfeito. Previsível e amarradinho.
Mas por que, afinal, Benedito, você foi errar o caminho?

O céu devia estar azul.
Quem pintou essas nuvens aí?
Onde foram parar meu arco-íris e minhas gaivotas?

Maria que amava João que amava Ana...se casava no final.
Ana iria morar em Portugal.
Mas Maria chora sozinha...onde foi que você errou, Maria?
E José, para onde foi?

O avesso do bordado tá todo emaranhado.
Caixas fazem pilhas instáveis nos armários.
As roupas estão amarrotadas e já não se abraçam.

E agora, Benedito?




quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Adeus, Yara

Mandei trocar os crisântemos por outra flor. Uma flor que conheci naquele instante. Agora já não me lembro do nome, mas no momento me pareceu importante.

Pessoalmente, não gosto da aparência do crisântemo, nem tampouco do cheiro. Tadinha da feinha fedida, foi preterida.

Crisântemos me remetem à ideia de morte. Estranho hábito de negar o óbvio, até no mais banal detalhe. De repente, aquela opinião (de quem já não pode opinar) tornar-se a mais imprescindível.

O rosto enrugado, arroxeado e cansado, quase aflito, pedi para maquiar. Não ficou uma ruga no seu rosto. Nem mesmo ao redor dos olhos. Fecharam a sua boca que antes estava aberta. Pintaram-na com um coral suave. 
No canto esquerdo da sua boca havia um pequeno machucado cor de canela, mas sua aparência era de extrema tranquilidade. Minha mãe usaria o adjetivo “serena” (acho que o usou). Minha mãe, uma mulher de tantos adjetivos, sempre usa o mesmo para os mortos. Acho que por não termos muita intimidade com a morte, a tratamos de uma maneira formal e usamos, para ela, sempre os mesmos adjetivos. Serena.

Quando, naquele subsolo escuro e triste, vi sua boca aberta, fiquei com a angustiante impressão de que, talvez nos últimos momentos, você tenha lutado pedindo para o ar entrar. Agora penso talvez que sua luta fosse para não deixar o restinho de você partir. Você foi uma lutadora, mesmo quando já não havia vida. Rendeu-se quando já não via motivos para escapar. Partiu. Quieta. Serena.

As flores, o manto de cetim que cobria suas pernas, o véu: tudo era branco. Escolha óbvia pela paz. O terço era azul. Estava na sua cabeceira. Gostaria de saber a sua história. Certamente era sagrado. 
Quem o teria abençoado? Não sei. Queria que fosse um novo, mas não havia tempo. Que bobagem tentar pintar a tristeza de branco.

Entre suas poucas peças de roupa, insegura, escolhi uma camisa roxa. Sempre soube da sua preferência pelas cores claras, mas escolhi a roxa. A insegurança, aquietei. Mandaram-me levar fraldas, sem entender, obedeci. A morte é um mistério e esta seria apenas uma das coisas que eu não entenderia naquela madrugada quente, em que eu, misteriosamente, morria de frio.

Havia dois lindos arranjos de flores à sua volta. Um deles expressava o amor da família, o outro, do esposo que você ainda acreditava ser seu. O esposo, que já não era seu, sempre foi o mais emocionado durante a cerimônia. Com você partia também grande parte das lembranças dele. Nem todas boas, nem todas ruins também. Não foram poucas as vezes que eu o vi recorrendo ao antigo lenço de pano, para tentar esconder a saudade.

Suas mãos estavam arroxeadas, sofridas, machucadas e seguravam-se ao terço azul. Mãos pequenas, magras e tristes. Machucadas demais, como todos nós.

No pescoço, restaram alguns pontos de uma última tentativa de resistência. Procurei esconder fechando o colarinho da sua blusa roxa. Nos últimos momentos tentei dar todo o carinho sincero que eu achava que fiquei te devendo. 

Desculpe se não foi suficiente, nunca é. Desculpa se não fui suficiente, nunca sou. Saiba que, pelo simples fato de usar usar tailleur caramelo, retocar as sobrancelhas e nunca deixar cair nada, você é, para mim, digna de muita admiração. Acho que nunca te disse isso.

Fica tranquila. Parte sossegada. Vou tentar cuidar das coisas que você deixou no caminho.

Talvez não seja tão caprichosa como certamente você seria. Certamente deixarei cair umas peças, quebrarei algumas. Nem, certamente, tão delicada. Mas saiba que vou tentar ficar com um pouco de tudo o que eu, mesmo sem saber, admirava em você.


Partida de Yara, em 21 de setembro de 2015.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

passado passado a limpo

tento, não sei se sempre consigo, não maquiar meu passado
foi o que foi
perigosa narrativa em primeira pessoa
a avó era brava e distante
a casa esquisita
a janela pequena
os amigos, pobres
alguns piolhentos
os primos, cruéis
o tio, nada a declarar

conheço gente que passa o passado a limpo
o quintal com cheiro de galinheiro vira Versalhes
o tio bandidão vira mocinho intelectual
o irmão cruel, como a maioria dos irmãos, vira mentor
que preguiça
não tente me enganar
eu sei o que você fez no verão passado

desconfio de narradores com passados brilhantes
famílias perfeitas
casas com papel de parede florido
desconfio de amores perfeitos
de cães com franja
de almofadas de croché


quinta-feira, 25 de junho de 2015

traída pelas lembranças



lembranças...
fui lá buscá-las, mas não as encontrei
no lugar das paredes azuis, encontrei uma laranja vivo
as salas pequenas, meio antigas, com pisos de madeira
agora são coloridas...amplas...barulhentas
cortinas de um abóbora vivo tingem a sala com uma luz vermelha, suspeita
encontrei mesas pequenas e grupos concentrados
muitos alunos andando com mochilas nas costas, pareciam em trânsito
não pareciam pertencer
não como nós pertencíamos

são novos desenhos que apagam os das minhas lembranças
mudaram a planta e não me consultaram
fecharam uns cantos de quintal
sumiram com um banco onde eu vivi meu amor eterno dos 12 anos

os muros que nós pintamos não está mais lá
o alambrado que pulamos sumiu
cobriram a entrada
abriram os portões que nos continham

está tudo diferente
esperava encontrar lá minhas lembranças
era a minha última esperança de refúgio do passado
guardei esse refúgio
nunca mais havia voltado lá

nem devia ter....

sábado, 20 de junho de 2015

especiarias da maturidade




agora meu andar é mais lento
é lendo
um passo  ...    outro passo  ...    mais um...
já não me cansam tantas corridas urgentes...e inúteis 

menos café, e café com menos açúcar. café sem bolo
vida menos doce
o tempo que mostra a doçura de outros ingredientes...especiarias da maturidade

o sono é melhor. já não brigo
aceito. aceitação
acordar ainda é desafio
o consolo no desenho dos primeiros raios de Sol na parede vermelha
a vida vale seguir vivendo

meus textos têm menos virgulas e menos adjetivos, cada vez menos adjetivos
menos é mais, sempre
ninguém me critica pela falta do brinco ou perfume
mas não ouse colocar uma vírgula entre meu sujeito e meu predicado
advérbios seguem soltos, sem vírgulas...desafio diário
as maiúsculas sumiram...daqui, pelo menos
optei, estilo...especiarias da maturidade...

reticências em em pontos finais
mudou o escrito? sumiu o medo?
não sei. já não preciso...especiarias da maturidade

metas ousadas...sem pressa
caminho. caminhar
hoje, menos peso
cabelos mais vermelhos...canela...especiarias

quero o que eu quero. hoje, sei o que é
o que eu quero e o que é bom pra mim
o que eu quero é o que é bom pra mim
sujeito, enfim!

bebo dos minutos e do voo dos tsurus....invejável rotina

gramática, por prática
literatura, por paixão....especiarias da maturidade

Onde está mesmo a nuvem que andava por aqui?

sexta-feira, 12 de junho de 2015

a autonomia do sorvete

em casa, bala era à vontade
pêssegos em calda e danone também
não eram luxo
era assim...todo dia tinha, simplesmente tinha
numa outra casa que frequentávamos, pêssego era luxo
e danone, não tinha
naquele tempo, eu não entendia o porquê, mas hoje entendo

em casa, não precisava pedir para comer bala
para tomar sorvete, precisava
sorvete era censurado
não racionado, mas censurado
o sorvete guardava os últimos resquícios da autoridade materna

eu, submissa, respeitava a censura
sempre, sempre que me dava vontade de sorvete
submetia meu desejo a instancias superiores
a resposta era sempre sim
e eu sempre consultava, mesmo assim


ainda lembro do gosto doce que teve meu primeiro sorvete subversivo

assim como clarice
que conheceu a eternidade através do chiclete
eu conheci a liberdade
através do sorvete

terça-feira, 2 de junho de 2015

momento presente


quero registrar este momento, assim, no presente.
esse momento presente. um presente de momento.
falo isso há alguns dias...e há alguns dias tenho medo que a paixão derreta entre meus dedos.
o dia a dia tem esse poder, inevitavelmente cruel, de derreter paixões.
tempos de adoçar o olhar. de olhar menos corporativo. de amar. de ser doce e mais tranquila.
será que consigo?
quero tentar, pois é aqui que quero estar.
essa sensação, que ainda me contém, de estar no lugar certo, de pertencer.
alguém já me disse isso aqui, no quintal que já é meu, pra minha alegria.
há alguns meses, quando passei pela primeira vez por aquele portão estreitinho, pensei: "tomara!"
o tomara aconteceu.
aqui estou...todos os dias...
ainda agradeço ao passar, todos os dias, por aquele portão estreitinho.
naquele tempo achei que não me cabia.
achei que não passaria.
respirei fundo, me apertei, revi minhas expectativas e defini: é lá que eu quero estar.
quando me chamaram, nem me surpreendi, de alguma forma eu sabia que o lugar me esperava.
talvez do lado de dentro, tenham demorado um pouquinho mais pra entender, mas o que importa é que entenderam, e hoje, estou aqui.
entre tsurus e livros pendurados em elásticos, entre textos e cartazes, entre ideias e olhares poéticos, entre sorrisos de crianças, entre sonhos de futuro, poesia e poesia.
salas brancas e grandes janelas verdes.
ateliers, arte e música.
potes coloridos
mãos carimbadas em paredes.
sonho estampado nas cortinas.
um ar, inacreditável, de passado que quer ser futuro.
com uma janela à minha esquerda, pela qual, passa gente sorridente o dia todo.
uma chefe que fala manso, que tem coração e sabe usá-lo.
uma nova cynthia. redescobrindo-se...todo dia!