quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Adeus, Yara

Mandei trocar os crisântemos por outra flor. Uma flor que conheci naquele instante. Agora já não me lembro do nome, mas no momento me pareceu importante.

Pessoalmente, não gosto da aparência do crisântemo, nem tampouco do cheiro. Tadinha da feinha fedida, foi preterida.

Crisântemos me remetem à ideia de morte. Estranho hábito de negar o óbvio, até no mais banal detalhe. De repente, aquela opinião (de quem já não pode opinar) tornar-se a mais imprescindível.

O rosto enrugado, arroxeado e cansado, quase aflito, pedi para maquiar. Não ficou uma ruga no seu rosto. Nem mesmo ao redor dos olhos. Fecharam a sua boca que antes estava aberta. Pintaram-na com um coral suave. 
No canto esquerdo da sua boca havia um pequeno machucado cor de canela, mas sua aparência era de extrema tranquilidade. Minha mãe usaria o adjetivo “serena” (acho que o usou). Minha mãe, uma mulher de tantos adjetivos, sempre usa o mesmo para os mortos. Acho que por não termos muita intimidade com a morte, a tratamos de uma maneira formal e usamos, para ela, sempre os mesmos adjetivos. Serena.

Quando, naquele subsolo escuro e triste, vi sua boca aberta, fiquei com a angustiante impressão de que, talvez nos últimos momentos, você tenha lutado pedindo para o ar entrar. Agora penso talvez que sua luta fosse para não deixar o restinho de você partir. Você foi uma lutadora, mesmo quando já não havia vida. Rendeu-se quando já não via motivos para escapar. Partiu. Quieta. Serena.

As flores, o manto de cetim que cobria suas pernas, o véu: tudo era branco. Escolha óbvia pela paz. O terço era azul. Estava na sua cabeceira. Gostaria de saber a sua história. Certamente era sagrado. 
Quem o teria abençoado? Não sei. Queria que fosse um novo, mas não havia tempo. Que bobagem tentar pintar a tristeza de branco.

Entre suas poucas peças de roupa, insegura, escolhi uma camisa roxa. Sempre soube da sua preferência pelas cores claras, mas escolhi a roxa. A insegurança, aquietei. Mandaram-me levar fraldas, sem entender, obedeci. A morte é um mistério e esta seria apenas uma das coisas que eu não entenderia naquela madrugada quente, em que eu, misteriosamente, morria de frio.

Havia dois lindos arranjos de flores à sua volta. Um deles expressava o amor da família, o outro, do esposo que você ainda acreditava ser seu. O esposo, que já não era seu, sempre foi o mais emocionado durante a cerimônia. Com você partia também grande parte das lembranças dele. Nem todas boas, nem todas ruins também. Não foram poucas as vezes que eu o vi recorrendo ao antigo lenço de pano, para tentar esconder a saudade.

Suas mãos estavam arroxeadas, sofridas, machucadas e seguravam-se ao terço azul. Mãos pequenas, magras e tristes. Machucadas demais, como todos nós.

No pescoço, restaram alguns pontos de uma última tentativa de resistência. Procurei esconder fechando o colarinho da sua blusa roxa. Nos últimos momentos tentei dar todo o carinho sincero que eu achava que fiquei te devendo. 

Desculpe se não foi suficiente, nunca é. Desculpa se não fui suficiente, nunca sou. Saiba que, pelo simples fato de usar usar tailleur caramelo, retocar as sobrancelhas e nunca deixar cair nada, você é, para mim, digna de muita admiração. Acho que nunca te disse isso.

Fica tranquila. Parte sossegada. Vou tentar cuidar das coisas que você deixou no caminho.

Talvez não seja tão caprichosa como certamente você seria. Certamente deixarei cair umas peças, quebrarei algumas. Nem, certamente, tão delicada. Mas saiba que vou tentar ficar com um pouco de tudo o que eu, mesmo sem saber, admirava em você.


Partida de Yara, em 21 de setembro de 2015.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

passado passado a limpo

tento, não sei se sempre consigo, não maquiar meu passado
foi o que foi
perigosa narrativa em primeira pessoa
a avó era brava e distante
a casa esquisita
a janela pequena
os amigos, pobres
alguns piolhentos
os primos, cruéis
o tio, nada a declarar

conheço gente que passa o passado a limpo
o quintal com cheiro de galinheiro vira Versalhes
o tio bandidão vira mocinho intelectual
o irmão cruel, como a maioria dos irmãos, vira mentor
que preguiça
não tente me enganar
eu sei o que você fez no verão passado

desconfio de narradores com passados brilhantes
famílias perfeitas
casas com papel de parede florido
desconfio de amores perfeitos
de cães com franja
de almofadas de croché


quinta-feira, 25 de junho de 2015

traída pelas lembranças



lembranças...
fui lá buscá-las, mas não as encontrei
no lugar das paredes azuis, encontrei uma laranja vivo
as salas pequenas, meio antigas, com pisos de madeira
agora são coloridas...amplas...barulhentas
cortinas de um abóbora vivo tingem a sala com uma luz vermelha, suspeita
encontrei mesas pequenas e grupos concentrados
muitos alunos andando com mochilas nas costas, pareciam em trânsito
não pareciam pertencer
não como nós pertencíamos

são novos desenhos que apagam os das minhas lembranças
mudaram a planta e não me consultaram
fecharam uns cantos de quintal
sumiram com um banco onde eu vivi meu amor eterno dos 12 anos

os muros que nós pintamos não está mais lá
o alambrado que pulamos sumiu
cobriram a entrada
abriram os portões que nos continham

está tudo diferente
esperava encontrar lá minhas lembranças
era a minha última esperança de refúgio do passado
guardei esse refúgio
nunca mais havia voltado lá

nem devia ter....

sábado, 20 de junho de 2015

especiarias da maturidade




agora meu andar é mais lento
é lendo
um passo  ...    outro passo  ...    mais um...
já não me cansam tantas corridas urgentes...e inúteis 

menos café, e café com menos açúcar. café sem bolo
vida menos doce
o tempo que mostra a doçura de outros ingredientes...especiarias da maturidade

o sono é melhor. já não brigo
aceito. aceitação
acordar ainda é desafio
o consolo no desenho dos primeiros raios de Sol na parede vermelha
a vida vale seguir vivendo

meus textos têm menos virgulas e menos adjetivos, cada vez menos adjetivos
menos é mais, sempre
ninguém me critica pela falta do brinco ou perfume
mas não ouse colocar uma vírgula entre meu sujeito e meu predicado
advérbios seguem soltos, sem vírgulas...desafio diário
as maiúsculas sumiram...daqui, pelo menos
optei, estilo...especiarias da maturidade...

reticências em em pontos finais
mudou o escrito? sumiu o medo?
não sei. já não preciso...especiarias da maturidade

metas ousadas...sem pressa
caminho. caminhar
hoje, menos peso
cabelos mais vermelhos...canela...especiarias

quero o que eu quero. hoje, sei o que é
o que eu quero e o que é bom pra mim
o que eu quero é o que é bom pra mim
sujeito, enfim!

bebo dos minutos e do voo dos tsurus....invejável rotina

gramática, por prática
literatura, por paixão....especiarias da maturidade

Onde está mesmo a nuvem que andava por aqui?

sexta-feira, 12 de junho de 2015

a autonomia do sorvete

em casa, bala era à vontade
pêssegos em calda e danone também
não eram luxo
era assim...todo dia tinha, simplesmente tinha
numa outra casa que frequentávamos, pêssego era luxo
e danone, não tinha
naquele tempo, eu não entendia o porquê, mas hoje entendo

em casa, não precisava pedir para comer bala
para tomar sorvete, precisava
sorvete era censurado
não racionado, mas censurado
o sorvete guardava os últimos resquícios da autoridade materna

eu, submissa, respeitava a censura
sempre, sempre que me dava vontade de sorvete
submetia meu desejo a instancias superiores
a resposta era sempre sim
e eu sempre consultava, mesmo assim


ainda lembro do gosto doce que teve meu primeiro sorvete subversivo

assim como clarice
que conheceu a eternidade através do chiclete
eu conheci a liberdade
através do sorvete

terça-feira, 2 de junho de 2015

momento presente


quero registrar este momento, assim, no presente.
esse momento presente. um presente de momento.
falo isso há alguns dias...e há alguns dias tenho medo que a paixão derreta entre meus dedos.
o dia a dia tem esse poder, inevitavelmente cruel, de derreter paixões.
tempos de adoçar o olhar. de olhar menos corporativo. de amar. de ser doce e mais tranquila.
será que consigo?
quero tentar, pois é aqui que quero estar.
essa sensação, que ainda me contém, de estar no lugar certo, de pertencer.
alguém já me disse isso aqui, no quintal que já é meu, pra minha alegria.
há alguns meses, quando passei pela primeira vez por aquele portão estreitinho, pensei: "tomara!"
o tomara aconteceu.
aqui estou...todos os dias...
ainda agradeço ao passar, todos os dias, por aquele portão estreitinho.
naquele tempo achei que não me cabia.
achei que não passaria.
respirei fundo, me apertei, revi minhas expectativas e defini: é lá que eu quero estar.
quando me chamaram, nem me surpreendi, de alguma forma eu sabia que o lugar me esperava.
talvez do lado de dentro, tenham demorado um pouquinho mais pra entender, mas o que importa é que entenderam, e hoje, estou aqui.
entre tsurus e livros pendurados em elásticos, entre textos e cartazes, entre ideias e olhares poéticos, entre sorrisos de crianças, entre sonhos de futuro, poesia e poesia.
salas brancas e grandes janelas verdes.
ateliers, arte e música.
potes coloridos
mãos carimbadas em paredes.
sonho estampado nas cortinas.
um ar, inacreditável, de passado que quer ser futuro.
com uma janela à minha esquerda, pela qual, passa gente sorridente o dia todo.
uma chefe que fala manso, que tem coração e sabe usá-lo.
uma nova cynthia. redescobrindo-se...todo dia!


Com o tempo, você acaba se acostumando.....
A acordar antes do sol
Ao ônibus lotado
À comida meio fria
À roupa meio colada
Ao pouco amor
Aos óculos na ponta do nariz
À distância segura
À conveniência do silêncio e da pouca luz`
À não respostas
A fazer menos perguntas
A andar rápido
A andar devagar
A não andar
A dormir pouco
A desfrutar da insônia
A evitar carboidrato
A resistir a paçocas e a clichés
A beijar pouco a filha
A ler menos do que gostaria
A desconfiar da poesia
A viver mais do dia a dia
A comer a carne mal passada
A andar nas mesmas ruas
A nova ortografia
A deixar o passado passar
A deixar o futuro acontecer
A precisar de menos
A querer demais
Ao café sem açúcar
Com o tempo, você acaba se acostumando....
Que pessoas magoam muito
Que poucas se desculpam
A esquecer
A querer esquecer
Com a ideia de que você não é a melhor irmã
A melhor filha
A melhor mãe
A melhor jogadora de basquete
Que seu texto não é o melhor
Que você não é mais a miss primavera
Que seus olhos não são os mais azuis
À mediocridade confortável
À parte mais baixa do pódio
A viver à sombra dos holofotes

Com o tempo você acaba se acostumando....

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Silêncios

"O silêncio é a gente mesmo demais". (G.R.)
Quando eu era pequena, ficava curiosa quando eu via amigos, frente a folhas gigantes, fazendo desenhos minúsculos. 
Uma vez, tentando ser um não eu, desenhei pequenininho. 
Bem pequenininho. Sobrou um tantão de folha. Botei passarinho. 
Só a silhueta, porque, como você bem sabe, odeio passarinhos. 
Não vida também sou assim. 
Tenho problemas com espaços vazios. Encho de passarinho.
Problema é que, dependendo do passarinho, faz um barulho danado...e caga. 
Pior! Às vezes, tudo isso ao mesmo tempo.