“Seu pai descansou”
“Seu pai partiu”
“Ele não resistiu”
“Foi melhor assim”
Não tive o direito a nenhum desses eufemismos. A morte,
irônica e implacável, se revelou sem nenhum cuidado para mim da fresta da
janela do quarto, que um dia já abrigou a morte da avó. Triste janela.
Alguém, sobre o meu pai, fazia a tal massagem cardíaca que a
gente só vê nos filmes. Uma vizinha de outra vida, uma respiração boca a boca.
Dizem que eu surtei e que fiz birra. O galo na testa hoje
confirma essa hipótese improvável.
Eu gritei para chamá-lo. Gritei muito e muito alto. Como uma
criança que sente dor ou é largada sozinha no escuro. Gritei de dar dor na
garganta.
Ele me ignorou e partiu.
Um corpo vazio fingia dormir na cama. Na mesma posição em
que ele dormia, a mesma expressão. Mas os braços relaxados ao lado do tal
corpo, denunciavam, ele não estava mais ali. Resolveu deixar aquele corpo meio
estragado que já não servia mais - já não andava nem tocava timba - e partiu.
Deitei ao lado do tal corpo esperando dele uma porta, uma
passagem. Não se abriu. Foi ficando frio, o clima e o corpo, as orelhas arroxeavam,
a morte tomava conta de tudo.
Muita gente andava pela casa. Pouco havia o que ser feito.
As pessoas faziam café, preces, comentários inúteis e barulho. Minha mãe não
chorava, só tremia com o olhar meio perdido no futuro (ou no passado?).
Gosto de registrar as emoções quando elas acontecem, mas sei
que, neste caso, será difícil registrar todas que invadiram aquele longo
corredor na noite do dia 19 para o dia 20 de outubro de 2019. A gente nunca
esquece essas datas. Dia 20 era dia do poeta, dia do nascimento de Vinícius de
Moraes, e eu tantas vezes comparei meu pai a ele....irônicos calendários.
“Se todos fossem iguais a você....”
Uma pasta verde - idêntica a que nos acompanhou nos últimos
meses com exames e pedidos médicos - chegou nas mãos da tia. Ela guardava os “papéis
do cemitério”. Eu liguei. Eu falei. Nem chorei. Informações práticas diziam que
o custo seria alto e que o avô seria exumado. Decidi. Manda bala e segue o
jogo.
No IML, tornei a morte uma oficial realidade. Reclamei o
corpo que nem parecia ser seu. Vi a cicatriz costurada carinhosamente na parte
de traz da sua cabeça. Na frente, na testa intacta e branca, podia se sentir o
crânio sob a pele cortado, uma tampa.
Um milhão de pessoas foram vê-lo, elogiá-lo, falar da
alegria, da delícia que era viver ao seu lado. Foi lindo. Teve reza e aplauso,
do Ferreirinha e do Izonéu (me dou conta que nunca soube escrever esse nome,
tantas vezes citado por ele). Foi lindo. Eu sorri mais do que chorei. Mas
esperei que ele se metesse na conversa, como tanta vez se metia (e eu odiava).
Ele permaneceu quieto. Parecia estar tirando sarro da nossa cara.
Hoje, um dia depois, estou feliz. Uma felicidade quase
culpada. Isso, para mim, só pode significar que você também esteja. Cantando e
sorrindo, como gosto de lembrar de você.
Este texto te deixaria muito orgulhoso, pai. Leia e guarde
com o amor da “filha mais velha preferida”!
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