Ontem, no final da tarde chuvosa e do dia interminavelmente triste, alguém me disse: "você acaba cansando". Prontamente respondi: "Não, eu não me canso de nada."
A conversa acabou, mas o eco dessa revelação caminhou comigo sob a chuva. No silencio da rua escura, o barulho na minha cabeça era ensurdecedor. Era eu mesma querendo gritar algo pra mim. Era eu mesma fugindo pra não ouvir.
"Eu não me canso de nada."
Eu ouço as mesmas músicas que ouvia na adolescência. Coletâneas repetidas. Eventualmente, porém raramente, novos intérpretes por simples curiosidade, mas sempre as mesas melodias, as mesmas letras, as mesmas poesias. A mesma Água de Março fechando o verão. O mesmo Barquinho que vai e volta na voz miúda. O mesmo banquinho, o mesmo violão. A mesma Garota, hoje já idosa, desfilando pelas mesmas ruas de Ipanema. O mesmo amor que Não é eterno, posto que é chama, mas que é infinito enquanto dura. O mesmo Samba que ainda é uma forma de oração.
Eu moro no mesmo bairro desde que nasci. Ando nas mesmas calçadas, nas mesmas vielas. Passo sob as mesmas árvores. Frequento a mesma padaria. Enfrento a mesma ladeira com os mesmos paralelepípedos. Me deslumbro com o excesso de ofertas de novos títulos da mesma antiga banca de jornais. Encanto-me com as poucas fachadas que sobreviveram aos novos moradores. Respiro a nostalgia que dá perfume ao bairro de imigrantes. Já conheço poucos rostos. Pouquíssimos rostos ainda me conhecem. Hoje os carros na avenida são bem mais velozes, mas hoje andamos bem mais devagar.
Os meus amigos me viram crescer. Viram a menina séria e dedicada transformar-se em alguém que cobra da vida poucas certezas. A menina de ontem, já não é a melhor da classe, nem a mais popular ou a mais bonita. Já não é rainha da primavera. Ainda falamos da mesma escola, que agora tem o muro enfeitado com caquinhos de mosaico e nova proposta pedagógica. Relembramos os mesmos professores, contamos as mesmas histórias. Conhecemos os pais, irmãos, casas, hábitos. Conhecemos as histórias de vida. Algumas fáceis, outras nem tanto. Os mesmos amigos, renovando risadas há 40 anos.
Ainda durmo com a mesma coberta que me cobria há 30 anos. Era novidade na época. Um substituto mais saudável aos cobertores que castigavam os alérgicos. Hoje ela está puída, já se pode ver através do tecido. A estampa esmaeceu. Parece que as folhas miúdas, que enfeitavam o marrom do fundo, caíram num inverno tardio. Toda noite a enrolo e coloco sob meu rosto. É inenarrável o prazer que isso me proporciona.
Numa estante moderna, peças antigas disputam espaço com modernos equipamentos. Um relógio que já marcava horários rígidos há quase 100 anos, agora tem máquina mais silenciosa. Os horários já não são tão rígidos. O relógio já não é tão preciso. Hoje ela é mais precioso que preciso. O rádio, que sempre ficou na cabeceira esquerda da cama da minha avó. Cama onde sentávamos e aprendíamos a bordar. Nunca aprendemos, mas gastamos intermináveis metros de fios coloridos. Eu amava aqueles novelos. Onde será que foram parar as miniaturas das peças de porcelana? Eu não me lembro de ter ouvido nada nesse rádio, mas lembro dele sempre ter estado lá. Um vidro de perfume. Cristal. Lindo. Vazio agora. Nem sei se um dia ele esteve realmente cheio. Uma sopeira, linda, florida com detalhes dourados. Não me lembro de ter tomado um prato sequer de sopa desta sopeira, mas a guardei como um gesto de carinho da madrinha tão querida. Um tesouro seu que tão carinhosamente passou às minhas mãos. Uma parte da sua história que, enfim, ligou-se à minha. O relógio com o cuco. O cuco não existe mais. Será que morreu? Fugiu? Hoje ele é silencioso e me observa. Talvez criticando meu tempo que passa. Meu tempo que passa sem sopa, sem música no rádio, sem cuco, sem cores nos novelos.
Quando eu nasci, meu pai me comprou uma boneca para a primogênita. Não era uma boneca simples, nem da Estrela a boneca era. Era uma boneca exótica. "Exótica", era um adjetivo que sempre me pareceu muito ousado para uma boneca. A boneca é vermelha, tem cabelos grisalhos. Ela sorri de olhos fechados e tem bochechas proeminentes. A boneca ainda existe. Eu ainda amo essa boneca. Hoje ela segura alguns livros da minha biblioteca. Por ser exótica, a deixo perto de Anais Nin. Elas se dão bem, acredito eu. A boneca continua sorrindo, nem rugas ela tem.
A casa da infância ainda é a mesma. Pouco mudou-se da disposição. A escada, de onde caí tantas vezes, ainda está no mesmo local. Ainda são doze degraus. Os muros ainda são altos. Eu cresci pouco, os muros continuam altos para minha estatura. O porão ainda existe. A sala ainda é gigante. A cozinha ainda é carinhosamente barulhenta e ainda cheira a café e rosquinhas. As xícaras ainda são de ágata. O piso do quarto da avó ainda é o mesmo. A avó já não dorme mais ali. O mesmo corredor interminável. As mesmas panelas, o mesmo mármore cor de rosa, um mesmo quartinho que mudou de função ao longo do tempo, a mesma tampa no quintal, o mesmo portão ligando as casas, as mesmas passagens secretas, os mesmos quadros, os mesmos porta retratos. As mesmas lembranças emolduradas pelas mesmas paredes.
A Dona Olívia ainda é a mesma. Uma delas é a mesma, a outra morreu há alguns anos. Ela já era idosa quando eu era criança. Pouco se vê ela varrendo as calçadas hoje em dia. Sempre tive medo dela. Nunca me pareceu uma vovozinha boazinha. Nem uma, nem outra. Ela tinha um presépio gigante. Todo ano, no Natal, íamos visita-lo. Era o único dia em que podíamos entrar na casa escura da feiticeira da rua.
O amor, da vida toda, ainda é o mesmo amor de toda vida. Renovado, renascido, reciclado diariamente. Mais experiente, mais tolerante, menos exigente consigo e com os outros. Mais charmoso, mais atrevido, mais leve quanto às expectativas que a vida não atendeu. Mais romântico, mais criativo, mais carinho e menos críticas. Mais tio e menos sobrinho. Mais pai que filho. Mais sensível, mais sonhador, mais nostálgico. Mais próximo. Mais terno e mais eterno.
As mesmas músicas, as mesmas histórias contadas nas mesmas poesias. Sonhos tão diferentes. Tão poucos e tão simples. O mesmo bairro que é tão longe e tão perto de tudo o que hoje eu preciso. Tudo cabe aqui. Hoje, eu aqui me encaixo. Já achei que não encaixava um dia. A mesma coberta que já é suficiente pro pouco frio que eu sinto. O tecido amolecido pelo tempo, encarrega-se do carinho noturno. Os poucos amigos são suficientes. Não preciso de muitos, não preciso de muito. Preciso da verdade que eles são. A mesma casa é muito mais confortável do que foi um dia. Os retratos são muito mais verdadeiros. As crianças são novas, mas as alegrias as mesmas. O café continua quente nas mesma xícaras coloridas. Ainda rimos na mesma cozinha. O amor continua eterno.
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Do que são feitos os Laços de Família? Parte II
Do que, afinal, são feitos os tais "laços de família"? Sem a pretensão romântica de ser a dona da verdade, vou tentar registrar aqui a sensação dos ingredientes que hoje compõem meus laços de família.
Primeiramente é necessário registrar que os laços de família ficam evidentes entre as paredes de tijolinho aparente da casa da Maria. É lá que se sente o cheiro do amor que adoça os laços. É lá que os laços são alimentados, são cuidados, são comemorados.
Sempre há festa em torno da mesa mágica da cozinha mágica da Maria. Basta que se sentem duas pessoas que a festa, como mágica, se realiza. São sempre risos fáceis, piadas, lembranças, fotos históricas, cheiro de bolo de segunda feira. Existem sempre amigos em volta da mesa mágica da cozinha da Maria. Há sempre um barulho de água caindo na pia ao fundo. O som do portão que abre quando alguém chega. O falar de alguma televisão ligada em algum cômodo. Há sempre festa, bolo e barulho na cozinha da Maria.
Nem sempre a casa da Maria foi tão alegre. A felicidade era contida. Havia conflitos que se escondiam atrás da porta da área íntima da casa, apesar da área íntima da casa nunca ter tido uma delimitação clara para ninguém, os conflitos existiam, eram evidentes. No meio de alguma bagunça, de algum entulho, no fundo de alguma gaveta de tranqueiras, os conflitos sumiram. Incrível, eles não existem mais.
Na casa da Maria havia poucas crianças. Os natais foram ficando vazios de sentido. O papai noel não enganava mais ninguém. Ninguém comia os enfeites de chocolate da árvore. As poucas crianças já estavam crescidos...a casa passou a ficar silenciosa.
Como tudo na casa da Maria é dotado de certa dose de benção especial, de susto chegou Cecília. Fora de hora, não planejada, para nos ensinar que somos meros atores, mas que quem escreve a história é alguém que sabe muito mais que nós. Chegou na hora e do jeito que quis. Cecília faz barulho, sorri, engatinha, chama pra si todos os holofotes. Cecília trouxe para a casa da Maria, de novo, o cheiro de criança. Cheiro de criança é essencial como ingrediente para laços de família.
Acharam que era pouco. Logo atrás de Cecília, vieram os gêmeos: Arthur e Isadora. Não bastava ser mais uma criança, tinham que ser duas, não bastava serem gêmeos, tinham que ser um casal, não bastava esperarem quase até o final da gravidez, tinham que ser lindos. Agora são três. Três novos ingredientes para adoçar nossos já tão doces laços. Nós, embasbacados, ainda nos sentimos como crianças presenteadas pelo Papai Noel. Exibimos nossos presentes, cheiramos nossas novas bonecas e rimos feito bobos.
Como registrar de forma fiel o aroma de amor que se sente no ar na casa da Maria?
terça-feira, 23 de julho de 2013
Do que são feitos os laços de família?
Uma avó, três filhas, 10 netos, alguns bisnetos. Sou incapaz de reconhecer os bisnetos. Percebo alguns traços sutis dos pais, mas não me esforço para saber quem são. Aparentemente, eles também não se interessam em saber quem sou eu. Desconfio que a semelhança com minha mãe me denuncia. Um mesmo tronco de família. Desconhecidos dentro de uma sala cheirando mal. Desconforto e um morto entre nós. Uma avó triste, tão triste. O rosto dela é a tradução da tristeza de quem sobrevive aos seus descendentes.
O morto foi um tio um dia. Tive poucos tios. Apenas dois. Um deles, amei e odiei. Foi quem me ensinou a perdoar. Desse, que hoje era o centro das atenções, eu não tinha ódio, nem amor, nem lembranças tão pouco. Ele foi marceneiro. Fez armários, portas e o forro da casa dos meus pais e só. Foi só o que ele fez. Não consegui sofrer por ele, mas sofri pela tia, meio desorientada e abandonada na vida.
Quase no momento final, chorei na despedida do irmão. Tão velho, cego, perdido, à beira da morte há tantos anos. Chorando dolorosamente sobre o corpo do irmão, sem poder vê-lo. Vi meu pai chorando pelos amigos de uma infância tão distante. Muito mais distante do que a temida morte. Sinto que meu pai não quer morrer. Hoje o vi chorar. Chorar pelo amigo perdido ou pela sombra da morte?
O dia estava feio, como são todos os dias de enterro. Caía uma garoa fina e as pessoas se encolhiam. Encolhiam-se de frio e também para evitar-se mutuamente. Triste. Tudo era triste ali. A morte era triste, mas também era triste a vida.
Do que, afinal, são feitos os laços de família?
quinta-feira, 16 de maio de 2013
Nascem mães
Em 100 anos mudaram muito os nossos papéis. De donas de casa e submissas esposas, passamos a arrimo de família, mães solteiras, altas executivas, presidentes da república.
Mudaram nossa cabeça e nosso corpo. As antes tão infantis meninas de 12 anos, hoje já são mulheres cheias de curvas e desejos. As balzaquianas nunca foram tão cobiçadas. A juventude agora dura mais.
A maternidade, antes natural aos 18, hoje vai para o fim da fila das prioridades. Antes vem os estudos, a carreira, a casa própria, o carro do ano, a utopia da estabilidade. Tornamo-nos mães tardias.
Conquistamos o direito de sermos "mães loucas". Mães sufocadas entre os papéis de mãe, amante, dona de casa, alta executiva e amante. Cabeça em planilhas de excell, mãos de fada para bolos e quitutes, peitos fartos de leite, lingerie sensual. Onde se encontra a magia de desempenhar bem tantos papéis??
Só uma mulher seria capaz de tanto. Só nós nascemos programadas para a total abnegação em função do outro.
Em pleno sécuo XXI, sufocada entre papéis impostos, planilhas e Cinquenta Tons de Cinza, ainda cultivamos o desejo e a alegria da maternidade, com todos os ônus que ela traz.
Nasce mais uma mãe...
Eu a vi nascer. A lembrança que guardo do dia do seu nascimento é uma cena na calçada da casa materna. Uma perua escolar vinha buscar a outra irmã. Uma perua azul. A mãe, sempre presente, estava ausente naquele dia. Tinha ido buscar mais uma menina para nos.
Nao lembro o que senti. Não sei se tinha ideia da dimensão que aquilo tinha. Ela veio muito pequenininha, não lembro se enrolada em xale ou manta. Deste tempo sobrou muito pouca lembrança. Nem todas boas. Ainda bem pequena, ficou muito doente, dizem que quase morreu. Sempre ouço contarem histórias sobre lábios e unhas roxas e alguns dias em uma UTI. Sempre achei isso bem sério. Lembro de uma vela acesa aos pés de um santo ao lado da porta da entrada e lembro do choro da minha mãe.
Não sei se por esse fato, não sei se pelo fato de ter tido ombro de irmãs mais velhas, mas Carina sempre foi forte. Forte e independente. De tão independente, muitas vezes se fez distante.
Dela agora eles vão chegar. Gêmeos. Os únicos gêmeos na família. Devem vir Arthur e Isadora. Já tão especiais desde antes de chegarem. Tão esperados, de certa forma, até temidos.
Carina é uma mãe linda. Ela iluminou. A barriga giganté é incômoda, os pés incham, as costas dóem, mas Carina é só sorrisos, é só felicidade.
Eu observo, olhos enchem de lágrimas. Transborda emoção.
domingo, 24 de março de 2013
Pedido ao tempo
Tempo,
por favor devolva-me minhas tardes livres de angústias e aflições,
devolva-me a vida sem perdas nem partidas,
devolva-me aos meus 20 anos.
Tempo,
devolva meus fartos cachos despreocupados,
minhas vespertinas aulas de violão,
devolva-me meus sonhos leves e realizáveis.
Tempo,
preciso urgente das minhas esperanças ao Sol,
da fantasia de amores eternos,
de cabanas na praia,
da sombra da cerejeira.
Tempo,
preciso da chuva na cabeça ao final da tarde,
preciso do cheiro do café no ninho materno
invadindo minha alma e me dizendo que vai dar tudo certo enfim.
Tempo,
preciso acreditar novamente nos finais felizes,
devolva-me minhas ilusões críveis,
devolva-me aos meus 8 anos, aos meus 12 anos, aos meus 15 anos...
o brilho dos meus olhos
Tempo,
devolva-me tudo o que eu tinha a reazliar,
tudo o que era tão possível...
Tempo,
preciso de tempo para respirar.
por favor devolva-me minhas tardes livres de angústias e aflições,
devolva-me a vida sem perdas nem partidas,
devolva-me aos meus 20 anos.
Tempo,
devolva meus fartos cachos despreocupados,
minhas vespertinas aulas de violão,
devolva-me meus sonhos leves e realizáveis.
Tempo,
preciso urgente das minhas esperanças ao Sol,
da fantasia de amores eternos,
de cabanas na praia,
da sombra da cerejeira.
Tempo,
preciso da chuva na cabeça ao final da tarde,
preciso do cheiro do café no ninho materno
invadindo minha alma e me dizendo que vai dar tudo certo enfim.
Tempo,
preciso acreditar novamente nos finais felizes,
devolva-me minhas ilusões críveis,
devolva-me aos meus 8 anos, aos meus 12 anos, aos meus 15 anos...
o brilho dos meus olhos
Tempo,
devolva-me tudo o que eu tinha a reazliar,
tudo o que era tão possível...
Tempo,
preciso de tempo para respirar.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Ausências
Ontém, em meio a arrumações que o tempo disponível tem me permitido, joguei uma peça fora.
Não fui capaz de encará-la enquanto a colocava num saco colorido. Não fui ousada o suficiente para ter colocá-la num revelador saco transparente. Talvez fosse julgada por isso. Certamente seria.
Ela entregou-se silenciosa, quase resignada. Não resistiu. Não argumentou, nem quis se defender do descarte. Não esbravejou, não cobrou a importância da história.
Acomodou-se ao fim. Morreu em paz. Como quem morre no final de muita vida.
O saco, que serviu-lhe de mortalha, era de um elegante veludo cinza. Quase uma vingança ou talvez um último e sofisticado gesto de agradecimento a uma história tão longa e salpicada de alguns momentos plenos de alegria.
Ela estava silenciosa lá há anos. Intercalou momentos de resguardo e exposição. Era uma das peças que dava significado a uma prateleira que agora fica deserta. A vida também é feita de espaços. A prateleira deserta fica agora a espera de uma nova peça, de uma nova história.
Por que será afinal que o vazio incomoda tanto? De onde virá essa necessidade urgente de encobrir as marcas brancas deixadas por peças, por quadros, por pessoas?
Deixo que o vazio respire.
Preciso dele nesse momento.
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