quinta-feira, 1 de março de 2012

A máquina de fazer espanhóis - Valter Hugo Mae



"a máquina de  fazer espanhóis"
Valter Hugo Mae

num primeiro namoro a página assusta. não há parágrafos, nem a letra maiúscula que anuncia o início da sentença. não há dois pontos, travessão na outra linha.
ENCANTADOR!
um livro que me fez chorar e chorar de rir. em algumas situações até na mesma página.
abaixo, alguns trechos pinçados...
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"criei um pequeno embalo, como para confortar. vai ficar tudo bem, vai correr tudo bem. o que era impossível, e o impossível não melhora, não se corrige."
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"com a morte, também o amor devia acabar. acto contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro de nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade. e não é compreensível que assim aconteça. com a morte, tudo o que respeita a quem morreu devia ser erradicado, para que aos vivos o fardo não se torne desumano. esse é o limite, a desumanidade de se perder quem não se pode perder. foi como se me dissessem; senhor silva, vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhes os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmóes, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante."
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"é só não nos tornarmos  perigosos porque envelhecer é tornarmonos vulneráveis e nada valentes, pelo que enlouquecemos um bocado e somos só como feras muito grandes sem ossos, metidas dentro de sacos de pele imprestãveis que já não servem para nos impor verticalidade nem nas mais pequenas batalhas, como faria falta ferrarmos toda a gente e vingarmo-nos do mundo por manter as primaveras e a subitamente estúpida variedade das espécies e as manifestações do mar e a expectativa do calor e a extensão dos campos e as putas das flores e das arvorezinhas cheias de passarinhos cantantes aos quais devíamos torcer o pescoço para nunca mais interferirem com as nossas feridas mais profundas."
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"a laura morreu, pegaram em mim e puseram-no no lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias. foi o que fizeram. depois, nessa mesma tarde, levaram o álbum porque achavam que ia servir apenas para que eu cultivasse a dor de perder a minha mulher."
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"um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas, quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e foz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, ta~do de frente à morte, não entremos em pânico."
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"o ser humano é só carne e osso e uma tremenda vontade de complicar as coisas."
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"eu precisava desse resto de solidão para aprender sobre este resto da companhia."
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"nunca eu teria percebido a vulnerabilidade a quem um homem chega perante outro. nunca teria percebido como um estranho nos pode pertencer, fazendo-nos falta. não era nada esperada aquela constatação de que a família também vinha de fora do sangue, de fora do amor ou que o amor podia ser outra coisa, como uma energia entre pessoas, indistintamente, um respeito e um cuidado pelas pessoas todas."

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