Com as cores dos cabelos de Yara se vão os bibelôs que enfeitavam a casa, que nunca teve tempo de ser, verdadeiramente, um lar. Os quadros retirados das paredes deixam marcas claras, assim como deixam marcas as pessoas que um dia estiveram lá e hoje já não estão. São tristes os vazios deixado pela ausência. São tristes os vazios preenchidos pela saudade, pela mágoa, pelo abandono, pelo morrer aos poucos.
Na blusa de tricô caseiro, cor de doce de goiaba, dobrada com perfeição dentro do saco plástico, lacrado com fita, somente cheiro de pó. Cheiro do que foi guardado sem ter sido usado. Como o carinho que a gente guarda e não oferece. O carinho que a gente esconde e nunca põe em uso. Talvez como o carinho tímido e egoísta que a gente sufoca na garganta. Que a gente lacra dentro de sacos plásticos.
Em cada vão de armário que a praticidade vai esvaziando, um pouco do nada triste que sobra em todos os finais. O nada que toma conta de tudo. Por mais que se encha as prateleiras de lenços escoceses, toalhas belgas, cashimiras inglesas, um dia, inevitávelmente elas ficarão vazias. Cheias de nada. Impregnadas do cheiro triste da saudade. Um vazio implacável e mortal.
Assim como a voz de Yara que aos poucos desaparece, desaparecem papéis guardados, amarelados, dobrados. Desaparecem as fotos da infância. Desaparecem segredos guardados em pastas com elástico. Um milhão de receitas nunca executadas. Livros nunca lidos. Desaparecem coloridos quadrinhos de flores. Desaparece a força ds suas mãos. Desaparece, aos poucos, sua vida. Desaparecem as pessoas que já apareciam tão pouco.
Junto com a consciência, desaparece a dor. O sentimento de falta. Já dizia o filósofo moderno, "é impossível viver sem esquecer". Talvez Yara, de forma estratégica, tenha escolhido esta saída para conviver com mágoas e saudades. Finge que não entende, finge que não ouve, finge que não vê. Segue sentada, de olhar perdido e ralinhos cabelos brancos. Sem batom, sem o discreto risco de lápis marrom nas sombrancelhas. Sem exigências ou críticas. Sem óculos. Sem expectativas. Sentada, quieta, olhando o nada que restou.
A "madame" de tailer de lá caramelo, agora uma criança doce, carinhosa, meiga de mãos macias. Pedindo colo, pedindo abraço, proteção.
"O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.
(...)
Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.
(Ricardo Reis)
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