quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Que bom que deu tempo



Meu avô nunca desenhou comigo, mas que bom que eles tiveram tempo de saber que tipo de pessoa um avô poderia ser. Que tipo de pessoa o melhor avô poderia ser. Que tipo de avô a melhor pessoa poderia ser.
Que bom que deu tempo da Isa ficar perto de você, mais perto que todos os outros, é o que mostra agora.
Que bom que deu tempo do Tutu debruçar sobre o desenho, querendo ficar em destaque, como sempre quis.
Que bom que deu tempo da Cecê fazer postura de irmã mais velha e mostrar que, sim, sabe mais que todo mundo.
Que bom que deu tempo.
Deu tempo de você ser o avô que sempre sonhou ser. Melhor ainda que o pai que já era o melhor do mundo. Que bom que deu tempo de ser. Que bom que deu tempo de te ver nesse papel tão lindo.
Sua paciência infinita fica mais evidente agora. Cada papel riscado. Cada casinha da Branca de Neve. Cada cavalo.

A única coisa que te irritava era a correria. Brigava. Pai de meninas.






segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Dia do Poeta




“Seu pai descansou”
“Seu pai partiu”
“Ele não resistiu”
“Foi melhor assim”
Não tive o direito a nenhum desses eufemismos. A morte, irônica e implacável, se revelou sem nenhum cuidado para mim da fresta da janela do quarto, que um dia já abrigou a morte da avó. Triste janela.
Alguém, sobre o meu pai, fazia a tal massagem cardíaca que a gente só vê nos filmes. Uma vizinha de outra vida, uma respiração boca a boca.
Dizem que eu surtei e que fiz birra. O galo na testa hoje confirma essa hipótese improvável.
Eu gritei para chamá-lo. Gritei muito e muito alto. Como uma criança que sente dor ou é largada sozinha no escuro. Gritei de dar dor na garganta.
Ele me ignorou e partiu.
Um corpo vazio fingia dormir na cama. Na mesma posição em que ele dormia, a mesma expressão. Mas os braços relaxados ao lado do tal corpo, denunciavam, ele não estava mais ali. Resolveu deixar aquele corpo meio estragado que já não servia mais - já não andava nem tocava timba - e partiu.
Deitei ao lado do tal corpo esperando dele uma porta, uma passagem. Não se abriu. Foi ficando frio, o clima e o corpo, as orelhas arroxeavam, a morte tomava conta de tudo.
Muita gente andava pela casa. Pouco havia o que ser feito. As pessoas faziam café, preces, comentários inúteis e barulho. Minha mãe não chorava, só tremia com o olhar meio perdido no futuro (ou no passado?).
Gosto de registrar as emoções quando elas acontecem, mas sei que, neste caso, será difícil registrar todas que invadiram aquele longo corredor na noite do dia 19 para o dia 20 de outubro de 2019. A gente nunca esquece essas datas. Dia 20 era dia do poeta, dia do nascimento de Vinícius de Moraes, e eu tantas vezes comparei meu pai a ele....irônicos calendários.
“Se todos fossem iguais a você....”
Uma pasta verde - idêntica a que nos acompanhou nos últimos meses com exames e pedidos médicos - chegou nas mãos da tia. Ela guardava os “papéis do cemitério”. Eu liguei. Eu falei. Nem chorei. Informações práticas diziam que o custo seria alto e que o avô seria exumado. Decidi. Manda bala e segue o jogo.
No IML, tornei a morte uma oficial realidade. Reclamei o corpo que nem parecia ser seu. Vi a cicatriz costurada carinhosamente na parte de traz da sua cabeça. Na frente, na testa intacta e branca, podia se sentir o crânio sob a pele cortado, uma tampa.
Um milhão de pessoas foram vê-lo, elogiá-lo, falar da alegria, da delícia que era viver ao seu lado. Foi lindo. Teve reza e aplauso, do Ferreirinha e do Izonéu (me dou conta que nunca soube escrever esse nome, tantas vezes citado por ele). Foi lindo. Eu sorri mais do que chorei. Mas esperei que ele se metesse na conversa, como tanta vez se metia (e eu odiava). Ele permaneceu quieto. Parecia estar tirando sarro da nossa cara.
Hoje, um dia depois, estou feliz. Uma felicidade quase culpada. Isso, para mim, só pode significar que você também esteja. Cantando e sorrindo, como gosto de lembrar de você.
Este texto te deixaria muito orgulhoso, pai. Leia e guarde com o amor da “filha mais velha preferida”!





terça-feira, 8 de outubro de 2019

Meu pai teve um AVC




O sonho frustrado. O braço parado. O futuro questionado. O carro enguiçado.
Meu pai teve um AVC.
A frase fica voando em uma nuvem em um fluxo confuso de consciência não literária, mas fantástica. Não parece que essa vida seja minha. Sonho? Papel trocado?
O dito não encontra lugar na nuvem nem na vida. Fora de contexto.
Meu pai teve um AVC.
Já me imagino mudando o discurso do meu histórico familiar na minha consulta médica. Um sim invadindo uma coluna de habituais nãos. O passado mudando o futuro. Encruzilhada de vida.
Ele teve um AVC. Agora sonha ir para Portugal.
Nunca sonhou antes? Ou o AVC liberou o sonho esquecido?
Agora, sonha, com cadeira de rodas e tudo mais. Cadeira de rodas e ladeiras de Lisboa?
Cadeira de rodas e ladeiras de Lisboa. A melhor metáfora para minha realidade atual.
Desgovernada, com pouca habilidade, em uma cadeira de rodas solta na íngreme realidade que a vida impõe. Implacável.
Na descida desgovernada, meio sem saber em que muro vou parar, me divirto, rio.
Não é de mim. Mas talvez seja para mim.
Passo as noite de chinelo, esperando o chamado confuso dele.
Ele faz perguntas. Mistura passado, com presente com delírios de todos os tempos e dimensões.
Comemoramos pequenas conquistas. Unidos.
Sabe quem sou. Sabe quem somos. E sabe o que é o amor. Sempre soube.