quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Eu não me canso de nada!

Ontem, no final da tarde chuvosa e do dia interminavelmente triste, alguém me disse: "você acaba cansando". Prontamente respondi: "Não, eu não me canso de nada."

A conversa acabou, mas o eco dessa revelação caminhou comigo sob a chuva. No silencio da rua escura, o barulho na minha cabeça era ensurdecedor. Era eu mesma querendo gritar algo pra mim. Era eu mesma fugindo pra não ouvir.

"Eu não me canso de nada."

Eu ouço as mesmas músicas que ouvia na adolescência. Coletâneas repetidas. Eventualmente, porém raramente, novos intérpretes por simples curiosidade, mas sempre as mesas melodias, as mesmas letras, as mesmas poesias. A mesma Água de Março fechando o verão. O mesmo Barquinho que vai e volta na voz miúda. O mesmo banquinho, o mesmo violão. A mesma Garota, hoje já idosa, desfilando pelas mesmas ruas de Ipanema. O mesmo amor que Não é eterno, posto que é chama, mas que é infinito enquanto dura. O mesmo Samba que ainda é uma forma de oração.

Eu moro no mesmo bairro desde que nasci. Ando nas mesmas calçadas, nas mesmas vielas. Passo sob as mesmas árvores. Frequento a mesma padaria. Enfrento a mesma ladeira com os mesmos paralelepípedos. Me deslumbro com o excesso de ofertas de novos títulos da mesma antiga banca de jornais. Encanto-me com as poucas fachadas que sobreviveram aos novos moradores. Respiro a nostalgia que dá perfume ao bairro de imigrantes. Já conheço poucos rostos. Pouquíssimos rostos ainda me conhecem. Hoje os carros na avenida são bem mais velozes, mas hoje andamos bem mais devagar.

Os meus amigos me viram crescer. Viram a menina séria e dedicada transformar-se em alguém que cobra da vida poucas certezas. A menina de ontem, já não é a melhor da classe, nem a mais popular ou a mais bonita. Já não é rainha da primavera. Ainda falamos da mesma escola, que agora tem o muro enfeitado com caquinhos de mosaico e nova proposta pedagógica. Relembramos os mesmos professores, contamos as mesmas histórias. Conhecemos os pais, irmãos, casas, hábitos. Conhecemos as histórias de vida. Algumas fáceis, outras nem tanto. Os mesmos amigos, renovando risadas há 40 anos.

Ainda durmo com a mesma coberta que me cobria há 30 anos. Era novidade na época. Um substituto mais saudável aos cobertores que castigavam os alérgicos. Hoje ela está puída, já se pode ver através do tecido. A estampa esmaeceu. Parece que as folhas miúdas, que enfeitavam o marrom do fundo, caíram num inverno tardio. Toda noite a enrolo e coloco sob meu rosto. É inenarrável o prazer que isso me proporciona.

Numa estante moderna, peças antigas disputam espaço com modernos equipamentos. Um relógio que já marcava horários rígidos há quase 100 anos, agora tem máquina mais silenciosa. Os horários já não são tão rígidos. O relógio já não é tão preciso. Hoje ela é mais precioso que preciso. O rádio, que sempre ficou na cabeceira esquerda da cama da minha avó. Cama onde sentávamos e aprendíamos a bordar. Nunca aprendemos, mas gastamos intermináveis metros de fios coloridos. Eu amava aqueles novelos. Onde será que foram parar as miniaturas das peças de porcelana? Eu não me lembro de ter ouvido nada nesse rádio, mas lembro dele sempre ter estado lá. Um vidro de perfume. Cristal. Lindo. Vazio agora. Nem sei se um dia ele esteve realmente cheio. Uma sopeira, linda, florida com detalhes dourados. Não me lembro de ter tomado um prato sequer de sopa desta sopeira, mas a guardei como um gesto de carinho da madrinha tão querida. Um tesouro seu que tão carinhosamente passou às minhas mãos. Uma parte da sua história que, enfim, ligou-se à minha. O relógio com o cuco. O cuco não existe mais. Será que morreu? Fugiu? Hoje ele é silencioso e me observa. Talvez criticando meu tempo que passa. Meu tempo que passa sem sopa, sem música no rádio, sem cuco, sem cores nos novelos.

Quando eu nasci, meu pai me comprou uma boneca para a primogênita. Não era uma boneca simples, nem da Estrela a boneca era. Era uma boneca exótica. "Exótica", era um adjetivo que sempre me pareceu muito ousado para uma boneca. A boneca é vermelha, tem cabelos grisalhos. Ela sorri de olhos fechados e tem bochechas proeminentes. A boneca ainda existe. Eu ainda amo essa boneca. Hoje ela segura alguns livros da minha biblioteca. Por ser exótica, a deixo perto de Anais Nin. Elas se dão bem, acredito eu. A boneca continua sorrindo, nem rugas ela tem.

A casa da infância ainda é a mesma. Pouco mudou-se da disposição. A escada, de onde caí tantas vezes, ainda está no mesmo local. Ainda são doze degraus. Os muros ainda são altos. Eu cresci pouco, os muros continuam altos para minha estatura. O porão ainda existe. A sala ainda é gigante. A cozinha ainda é carinhosamente barulhenta e ainda cheira a café e rosquinhas. As xícaras ainda são de ágata. O piso do quarto da avó ainda é o mesmo. A avó já não dorme mais ali. O mesmo corredor interminável. As mesmas panelas, o mesmo mármore cor de rosa, um mesmo quartinho que mudou de função ao longo do tempo, a mesma tampa no quintal, o mesmo portão ligando as casas, as mesmas passagens secretas, os mesmos quadros, os mesmos porta retratos. As mesmas lembranças emolduradas pelas mesmas paredes.

A Dona Olívia ainda é a mesma. Uma delas é a mesma, a outra morreu há alguns anos. Ela já era idosa quando eu era criança. Pouco se vê ela varrendo as calçadas hoje em dia. Sempre tive medo dela. Nunca me pareceu uma vovozinha boazinha. Nem uma, nem outra. Ela tinha um presépio gigante. Todo ano, no Natal, íamos visita-lo. Era o único dia em que podíamos entrar na casa escura da feiticeira da rua.

O amor, da vida toda, ainda é o mesmo amor de toda vida. Renovado, renascido, reciclado diariamente. Mais experiente, mais tolerante, menos exigente consigo e com os outros. Mais charmoso, mais atrevido, mais leve quanto às expectativas que a vida não atendeu. Mais romântico, mais criativo, mais carinho e menos críticas. Mais tio e menos sobrinho. Mais pai que filho. Mais sensível, mais sonhador, mais nostálgico. Mais próximo. Mais terno e mais eterno.

As mesmas músicas, as mesmas histórias contadas nas mesmas poesias. Sonhos tão diferentes. Tão poucos e tão simples. O mesmo bairro que é tão longe e tão perto de tudo o que hoje eu preciso. Tudo cabe aqui. Hoje, eu aqui me encaixo. Já achei que não encaixava um dia. A mesma coberta que já é suficiente pro pouco frio que eu sinto. O tecido amolecido pelo tempo, encarrega-se do carinho noturno. Os poucos amigos são suficientes. Não preciso de muitos, não preciso de muito. Preciso da verdade que eles são. A mesma casa é muito mais confortável do que foi um dia. Os retratos são muito mais verdadeiros. As crianças são novas, mas as alegrias as mesmas. O café continua quente nas mesma xícaras coloridas. Ainda rimos na mesma cozinha. O amor continua eterno.

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